quarta-feira, 31 de março de 2010

VADER: UM ARQUÉTIPO DO SER

Por Darth Metrius

Faz algum tempo eu queria escrever sobre Anakin/Vader sob um olhar mais psicológico e religioso, entretanto sem traçar um perfil psicológico ou descrever uma psicopatologia qualquer que explicasse a personalidade e o caráter deste Herói e Vilão de Star Wars. Minha proposta é a de tentar ver como o personagem pode ser um reflexo do curso do ser humano ao longo da história e ao longo da vida. Para tal, vou propor um olhar dentro de uma perspectiva filosófica e cristã, pelas seguintes razões. Vader em sua concepção original abarca em si alguns elementos que sintetizam figuras da nossa história e cultura, como expus no artigo sobre Anakin em Paralelos IV. Em termos de cultura, a perspectiva cristã nos permite entender o personagem e a nós próprios, visto que a cultura ocidental se forjou em parte na religião. Se alguns de você já possuem alguma leitura em psicologia e filosofia, vão perceber que vou trilhar um caminho com vocês a partir da visão de mundo de Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, fundador da Psicologia Analítica e um dos maiores dissidente da Psicanálise, sendo um dos primeiros discípulos de Freud.


Não vou me ater a explicar em detalhes a teoria junguiana, pois esta não é a minha proposta, mas para escrever sobre o assunto e vocês poderem compreender mais facilmente, vou salpicar a teoria de forma simples e de fácil compreensão.
Carl Gustav Jung, filho de uma família cristã, cujo pai foi ministro protestante em Kesswil, no Cantão de Thurgau, Suíça, desde a infância sempre acalentou o interesse sobre a mente humana. Envolvido e impulsionado por seus sonhos noturnos, com forte conteúdo mitológico e cheio de figuras religiosas, Jung questionava a sua visão de mundo e acreditava que o ser humano se formava em sua personalidade a partir de elementos culturais comuns a todos na sociedade.
Se formou em medicina e especializou-se em Psiquiatria. Foi ele quem criou o célebre teste de psicodiagnóstico de Associação de Palavras. Sua vida religiosa e seu gosto por filosofia e literatura lhe forneceram o material para a construção de sua teoria. Foi amigo pessoal de Freud durante alguns anos, dos quais vieram a postular as bases da psicanálise. Mas romperam posteriormente por divergências teóricas. Freud, ateu, não aceitava a visão de que a personalidade humana se construía com elementos religiosos, enquanto Jung rejeitava a concepção de que os traumas psíquicos tinhas origens sexuais.
Jung se tornou bastante conhecido e sua teoria começou a ganhar adeptos durante os anos 30, mas foi perseguido e acusado de anti-semitismo e por simpatizar com os nazistas, acusações estas que se mostraram falsas já que Jung possuía vários alunos judeus e suas obras foram proibidas em toda a Alemanha e no III Reich, pois Jung criticava o Nacional Socialismo e o Comunismo como fenômenos sociais patológicos de identidade. Ele dizia, por exemplo, que o deus "Wotan" havia se apoderado do povo alemão. Wotan é o deus pagão dos germânicos equivalente ao Odin dos normandos, deus da Guerra, das Tempestades e efervescências. Wotan despertava apetites e paixões beligerantes. Morreu em 1961, com mais de 80 anos e seu trabalho influenciou não apenas a Psicologia, mas também a Antropologia, Sociologia, Artes, Literatura e os estudos da Mitologia.

Jung nos ajuda e muito na compreensão de Vader, pois o personagem, na sua construção, partiu do inconsciente de seu criador, George Lucas. É notável observar neste momento, que a história de vida de George Lucas também é influenciadora na criação do personagem e na Saga de Star Wars como um todo. Se Jung estivesse vivo em 1977, ano em que Star Wars foi as telas dos cinemas, Jung diria que aquele filme é um retrato do inconsciente de George Lucas, cheio de arquétipos e símbolos mitológicos e religiosos.
Neste assunto, temos que lembrar: George Walton Lucas Jr. é californiano de Modesto, filho de Dorothy e George Lucas, e levou uma vida comum a todos os jovens americanos. Desejava ser piloto de corridas, devido a sua paixão por carros, mas após sofrer um acidente automobilístico grave, sua visão da vida mudou. Oriundo de uma família fortemente religiosa, protestante metodista, Lucas sempre se interessou por temas religiosos e filosóficos, dos quais se arraigaram ainda mais com a leitura das obras antropológicas de Joseph Campbell. Posteriormente, revelou interesse em estudar a filosofia oriental, que juntamente com sua formação cristã, serviu de inspiração para a criação de Star Wars. Certa vez, ao ser questionado a qual religião George Lucas pertencia, ele respondeu de forma brincalhona: "Sou Budista Metodista." Por si, esta parte da biografia de Lucas, é uma grande ponta de "Iceberg" que nos indica o quão grande universo se encontra escondido e codificado em Star Wars.
Entendido isto, acho que podemos partir para observar Vader como um símbolo para nossa observação, convencidos de que há muito mais coisas entre o céu e Tatooine, do que a nossa vã filosofia pode conhecer (pausa para risos)!

Vader é, como conhecemos, o principal e mais importante personagem da Saga. Nele reside a figura do herói, do filho, do pai, do vilão, do guerreiro, do Si Mesmo, entre outros arquétipos de nosso inconsciente coletivo. Não vou me ater também a descrever a biografia de Vader, pois já  fiz anteriormente, mas de posse do conhecimento da qual já possuímos, teremos a capacidade de observar a nós mesmo.
Vader é em essência a forma simbólica da história da humanidade, mas precisamente descreve a saga humana em sua condição de ser. Esta é a minha proposta. Entendendo o Ser Humano como uma entidade única no Universo, sem paralelos e sem similar em matéria e essência, este ser se constrói ao longo das eras, a partir de um ponto inicial que nos remete a um passado onde a origem humana se assemelha aos primeiros anos de vida de Anakin, enquanto aquela criança boa e sem malícia, passando pela evolução deste ser e da sociedade, tendo como sua marca a adolescência e vida adulta de Anakin, mas precisamente durante a sua queda, terminando na morte, com a volta ao estado de Graça, onde o ser despeja todas as suas expectativas e impulsos emocionais e espirituais em uma condição de existência além da que experienciou durante a vida.

Podemos separar a história de Anakin/Vader em três fases distintas. A primeira, que podemos descrever, a sua infância e adolescência, é de certo modo uma descrição a priori, de um exemplo da condição do homem, em sua origem e essência. Como diriam os mais puros teóricos humanistas, descreve o homem enquanto um ser bom, puro, sem as marcas do mal e dos vícios que adquirimos ao longo da vida.
Apesar de sua infância sofrida, Anakin representa a existência idílica, da qual o ser desfrutou de toda a sua potencialidade. Na verdade este "modelo", da qual chamamos até agora de arquétipo e que retrata uma representação macro comum a todos os seres humanos, é uma variação de outros conceitos. Se pensarmos na criança, iremos de imediato ver a ideia de inocência, de pureza, de moral, etc. Condição esta que o personagem apresenta e que não apenas descreve nossa trajetória inicial, mas também descreve o início da vida em sociedade, em núcleos mesmo ainda pequenos, muito antes das grande civilizações.

Anakin já neste estágio assume o arquétipo do Herói. O Herói é aquele que tem a capacidade de se sacrificar pelo bem estar comum. Sua vida é pautada em suas ações e em seus valores morais e princípios. Percebemos que há ainda uma conexão com a imagem anterior, entretanto, notamos que o Herói é alguém que além de agregar em si tudo que é louvável e desejável, ele apresenta fraquezas que lhe tornam humano. Neste ponto, podemos dar o salto para a vida adolescente de Anakin e início de sua vida adulta. Anakin apresenta coragem e força, é alguém com extrema capacidade de amar e se afeiçoar as pessoas, mas ao passo que ele assim o faz, revela a sua dependência por estes mesmos entes, sua insegurança e dúvida. Apenas pontas de um enorme bloco de gelo, onde abaixo do limiar visível se esconde o medo e o ódio. Anakin já começa a trafegar entre a sua condição de Herói e passar para mais outro arquétipo: A Sombra.
Pode ser aqui a vida de seu criador, George Lucas. Em nosso estudo sobre estas imagens inconscientes, vemos que o Herói é alguém com capacidade de triunfar sobre a morte. Mas para tal, o Herói deve enfrentar esta morte, seja de forma física ou simbólica. Se de forma física, ele triunfa como mártir, mas se de forma simbólica, mesmo de sua destruição ele ressurge para vencer. Anakin passa pelo confronto com a morte ao se deparar com o falecimento de sua mãe. Ele consegue ressurgir do sofrimento, entretanto carregando uma forte mágoa, marca de sua sombra, da qual vem ser o pivô de suas motivações futuras. Se olharmos bem, é o enfrentamento da morte que marca a vida e muda o seu rumo. Anakin passa pela sua experiência e cresce. Sua morte simbólica se dá ao enfrentar Darth Tyranus, ao ser afligido em sua própria carne. George Lucas, após um grave acidente, também passa a ter novos valores e anseios de vida. Razão pela qual o fez deixar o automobilismo como sua paixão. Neste ponto, a obra sempre retratará o seu autor.

Anakin é a personificação do Ser em sua bondade quase plena, a medida que seu desejo pelo poder e força crescem dentro de si. Do mesmo modo que Adão e Eva desejaram a semelhança de seu criador, cedendo a soberba, Anakin passa a desejar o controle de todas as coisas ao seu redor, mesmo que para tal, sua busca o levasse a auto-traição. É quando vem à queda, a miséria de sua existência, aflorando a sombra. Todas as sombras das quais enfrentou agora se mostram residentes dentro dele. Mesmo ciente desta condição, resolve no íntimo se entregar por completo. Traumas e culpas do Herói agora lhe tornam o que mais ele rejeitava, suas crises e conflitos psicológicos o fazem cair. Anakin, enfim, torna Darth Vader, o vilão da qual o universo teme e sofre por sua influência. Ainda mais quando Vader passa por novo limiar e enfrentamento da morte simbólica, quando seu corpo queimado é revivido por uma armadura. Da mesma forma como em caindo em si, Adão tornar a culpar a mulher, que por sua vez culpa a serpente por seus destinos mortais, Vader agora culpa a tudo e todos pelo Arauto de sua queda, a morte de sua esposa e amada. Para vingar-se, Vader passa a ser o subjugador do mundo, do universo, oprimindo tudo aquilo que possa lhe ser uma ameaça. Seu Mentor deixa de ser o outro Herói, parceiro e amigo na sua jornada, para ser um Sombra ainda maior, que lhe orienta e direciona para o mal. Em verdade, observamos que neste caso, o mal é em parte absorvido por sua essência, fazendo com que haja dentro de si tanto um potencial maléfico como um potencial benéfico. É esta a condição humana após a sua infância, onde a sociedade se desenvolve e evolui. Isso se nota no dia-a-dia, quando vemos a história geral e a atualidade, onde o homem tanto tem a capacidade de amar quanto a capacidade de odiar, de se desenvolver como a de destruir, de cuidar como a capacidade de tirar a vida de outrem, de apresentar virtudes como apresenta os mais terríveis vícios. Este é o conflito do ser, a imagem da queda, o reflexo distorcido e deformado do passado perfeito, que leva a destruição inexorável. É necessário um novo Arauto, Mentor e Herói, que se oponha a esta Sombra ou a resgate de seu Lado Negro, por assim dizer.

Neste aspecto, a Redenção do Herói se dá pela constatação de que ele se perdeu em sua busca, abandonando o seu propósito original. Mas esta Redenção só se dá por meio de outro, e este Outro pode assumir as mais distintas formas arquetípicas. Na essência do ser, as relação entre o Ser e o Outro tomam significados onde a realidade é apresentada novamente, trazendo a restauração de sua condição primordial. Sem esta relação entre o Ser e o Outro, não há como haver a mudança. Em termos psíquicos, Vader é resgatado de seu transtorno de personalidade e aparente esquizofrenia, pela vivência com seu filho, Luke. O ser humano em geral funciona assim também, mesmo pelas relações com seus entes próximos, ou mesmo dentro de uma relação terapêutica. Em termos espirituais, é necessário um redentor, para resgatar o ser de seu caminho de morte e queda, sem a qual não é possível a restauração. O mesmo se aplica as sociedades humanas e a civilização. Um segundo Adão, em estado original, perfeito, restaura a o primeiro. No Cristianismo, a pessoa de Jesus Cristo é o único que pode trazer de volta a vida ao primeiro Adão, ainda em seu estado de queda e morte.
Para Carl Gustav Jung, estas narrativas e sistemas, foram arquétipos mentais comuns a todos na sociedade ocidental e encontram paralelos incrivelmente semelhantes em culturas asiáticas, africanas, e em povos oceânicos.
Vader ao se deparar com o mal que fez a si mesmo e a aqueles que amava, pois inconscientemente julgava proteger-se e proteger aos outros, mesmo agindo de forma cruel e tirânica, volta atrás e se rebela contra a verdadeira Sombra. Neste sentido, podemos dizer que Darth Sidious é o ícone da serpente em Star Wars. Notável é que George Lucas, em entrevista oficial, declarou nas vésperas do lançamento de A Vingança dos Sith, que Anakin experimentaria a ida ao inferno, e faria um pacto com o diabo. Vader/Anakin, restaurado, mesmo que ainda incompleto, passa a ter a força necessária para terminar a sua jornada, saindo de sua condição de morte e voltando a vida. Seus traumas e complexos negativos se desfazem, a medida que pelo Outro, ele se volta contra o diabo, a Sombra, a serpente e faz a sua declaração: "Estou livre de você."

Anakin, enfrenta a morte pela quarta e última vez. Desta vez, Anakin, volta a encontrar o limiar, mas a diferença é que a sua jornada já está completa. A morte é física e ele assume o lugar de mártir na mitologia, e passa a ser o mentor. Sempre os Arquétipos do Herói e do Mentor se confundem. Ora são os mesmo, ora são distintos, mas se tocam sempre e se revelam complementares. não é estranho que pessoas que passaram por graves problemas emocionais e psicológicos, superando tais adversidades, venham a ser exemplos de superação, apoiando a outros que estejam passando pelas mesmas condições. Não é estranho ver que pessoas que sofreram a agrura da vida e depois puderam vencer a jornada, hoje sustentem em suas mãos a alguém em condição semelhante a sua. Os heróis sempre possuirão seus mentores. É uma característica do herói, ser alguém que está aprendendo. É um aluno, um discípulo,um aprendiz de seu mestre, seu mentor. Anakin/Vader tive a passagem de Qui-Gon Jinn, Obi-Wan Kenobi e mesmo Palpatine/Sidious, que lhe instruiram e o formaram.

A verdade por traz dos símbolos de Star Wars é que eles todos não contam apenas uma estória moderna dos antigos contos de cavalaria e contos de fadas com uma roupagem futurística, mas sim, intencionalmente ou não, pois toda poesia extressa o interior de seu autor, mostra o que há de melhor e o que há de pior na espécie humana. Revela o que há de mais grandioso e o que há de mais baixo, revela sua natureza divina bem como a sua natureza caída. É a fotografia da sociedade, e do Ser que existe em seu mundo. Anakin/Vader é hoje, por si só, o arquétipo moderno do homem. Eis a razão principal de minha identificação com o personagem, e arrisco dizer que, como todo fã de Star Wars sempre tem uma afeição pelo homem de armadura negra e sua respiração medonha, esta seja a razão pela qual ele é tão admirado; a identificação natural com tudo o que resume o ser humano, este ser que é mal, mas contém em si a imagem de Deus.


Publicado no Portal Jedi Master: Ter, 30 de Março de 2010 12:26

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